No último dia 6 de agosto, um radialista foi morto a tiros enquanto apresentava um programa em Camocim, no Ceará. O relógio da Liberdade FM marcava 12h40. Um homem rendeu a recepcionista e outro mandou o operador de áudio se abaixar. Gleydson Carvalho levou três tiros, um deles na cabeça.
Gleydson Carvalho, morto a tiros em Camocim
A investigação apontou envolvimento de sete pessoas no crime – entre elas o tio e o sobrinho do prefeito de uma cidade vizinha. Conhecido pelas denúncias e cobranças contra políticos da região, Gleydson morreu por “falar demais”.
O caso de Gleydson não é isolado. De 2012 a 2014, houve 87 graves violações contra comunicadores no Brasil – 14 assassinatos, 18 tentativas de homicídio, 51 ameaças de morte e quatro sequestros. E em 74% dos casos há indícios de participação de agentes do Estado: policiais, políticos ou agentes públicos, aponta levantamento da associação Artigo 19, braço brasileiro de organização pró-liberdade de expressão sediada em Londres.
A violência continua em 2015. Apenas no primeiro semestre, um jornalista e três radialistas já foram mortos em decorrência de sua atividade profissional, e investiga-se a relação com a profissão em outros três homicídios.
A gravidade do cenário levou o Estado brasileiro a ser denunciado, na última sexta-feira, na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), órgão ligado à OEA (Organização dos Estados Americanos).
“Ao não desenvolver políticas efetivas de garantia da liberdade de expressão de comunicadores, o Estado brasileiro viola suas obrigações internacionais e por isso foi denunciado nesta audiência”, afirmou Paula Martins, diretora-executiva da Artigo 19.
Ao lado da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e da Fitert (Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão), a associação denunciou o Brasil por violação ao direito à liberdade de expressão, firmado na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário desde 1992.
“Os números são expressivos, e mostram que o quadro é sistemático: as violações ocorrem em todas as regiões, e em cidades de todos os portes”, disse à BBC Brasil Júlia Lima, coordenadoras do programa de proteção e segurança da liberdade de expressão da Artigo 19.
Procurada pela BBC Brasil, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República diz que não se trata de uma denúncia contra o Estado brasileiro, mas “sim de uma solicitação de informações a respeito ‘da violação sistemática de direitos humanos de comunicadores nos últimos três anos'”.
Contra o senso comum
Em julho de 2012, o cronista esportivo Valério Luiz foi morto a tiros na saída da rádio Jornal 820 AM, de Goiânia. A apuração concluiu que ele foi morto pelas críticas que fazia à diretoria do Atlético Goianiense, um dos maiores times de futebol do Estado. O ex-vice presidente do clube foi acusado de encomendar o crime a dois policiais militares – todos esperam em liberdade pelo júri popular.
O levantamento dos casos, diz Lima, contraria a ideia de que esse tipo de violação seria mais comum em regiões menos desenvolvidas – o Sudeste, por exemplo, concentrou 28% dos ataques registrados de 2012 a 2014.
Usando metodologia própria, a Artigo 19 descobriu que a maioria dos episódios (83% do total) resultou da tentativa dos comunicadores (sobretudo jornalistas, radialistas e blogueiros) de promoverem investigações e denúncias sobre temas de interesse público.
Um deles foi Pedro Palma, morto em fevereiro de 2014 na porta de casa em Miguel Pereira, município de 25 mil habitantes na região serrana do Rio. Dono e único repórter do jornal local Panorama Regional, ele cobria corrupção (como o desvio de patrocínio para um festival de jazz que não ocorreu) e já havia sido alvo de ameaças.
E embora casos como o de Palma ainda tramitam na Justiça, o relatório apresentado na sessão da CIDH em Washington (EUA) indica que três em cada quatro violações tiveram envolvimento de agentes públicos.
“Não levamos em conta apenas as investigações oficiais. Entrevistamos pessoas envolvidas em cada caso, como familiares, colegas de profissão e autoridades, para chegar a essas conclusões”, diz Júlia Lima.
Em busca de soluções
As entidades consideram que o governo brasileiro está longe de oferecer segurança devida aos comunicadores. O relatório diz que houve avanços com a ação, entre 2013 e 2014, de um grupo de trabalho sobre o tema na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
“Ainda assim, passado mais de um ano da finalização dos trabalhos do grupo, nenhuma das recomendações foi implementada”, afirma o relatório da Artigo 19, Abraji e Fitert.
Entre as recomendações por cumprir estão a ampliação do Sistema Nacional de Proteção para incluir comunicadores ameaçados, a criação de um Observatório de Violência contra Comunicadores e a padronização da ação da segurança pública em manifestações, para evitar a violência nessas ocasiões.
“O Estado oferece um Programa de Proteção para Defensores de Direitos Humanos que, de maneira isolada, atendeu casos de comunicadores, mas sem inseri-los formalmente em sua estrutura, o que acarreta na ausência de medidas específicas para esse público e na falta de reconhecimento por parte dos comunicadores de que esse mecanismo poderá atendê-los”, diz o relatório.
Questionada pela BBC Brasil sobre isso, a secretaria, hoje parte do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, afirma que “os comunicadores que estão sofrendo ameaças em razão do exercício da profissão podem, sim, solicitar sua inclusão” no programa. Segundo o órgão, o “procedimento já está em pleno vigor” e já há profissionais da área sendo atendidos.
Outras entidades vêm lançando alertas ao governo brasileiro sobre o agravamento da situação. Em junho deste ano, após dois assassinatos de jornalistas em uma semana, a ONG internacional Repórteres sem Fronteiras divulgou carta aberta à presidente Dilma Rousseff pedindo “medidas concretas e efetivas” contra esse tipo de violência.
A ONG diz que o Brasil “fracassou” na tarefa de prover segurança a esses profissionais, e hoje é o terceiro país do Ocidente mais perigoso para trabalhadores de mídia, atrás apenas de México e Honduras.
A impunidade em relação aos crimes também é uma das principais preocupações. Segundo a Artigo 19, dos casos registrados em 2014, por exemplo, 61% estavam arquivados ou ainda em apuração um ano depois. Outro número a corroborar esse diagnóstico partiu do CPJ (Comitê para Proteção de Jornalistas), que classificou o Brasil em 2015 como o 11º país no mundo com maior índice de impunidade em crimes contra comunicadores, e o segundo na América Latina.
Próximos passos
Para as entidades que denunciaram o Brasil na OEA, é preciso ação conjunta para enfrentar esses crimes, como no caso no jornalista Rodrigo Neto, morto em março de 2013. Neto investigava a ação de grupos de extermínio na região do Vale do Aço, em Minas Gerais, e um fotógrafo que trabalhava com ele foi morto um mês depois.
A mobilização de órgãos estaduais e federais ajudou a prender o acusado de matar os dois profissionais – os eventuais mandantes, contudo, continuam em liberdade.
O objetivo da denúncia apresentada na semana passada nos EUA é que o Brasil seja instado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos a adotar as recomendações das entidades.
Um primeiro passo nesse sentido foi dado logo após a audiência, quando o relator especial para liberdade de expressão da comissão, Edison Lanza, decidiu pedir informações ao Estado brasileiro sobre o cenário de ataques contra comunicadores.
Com informações da BBC Brasil/ Londres
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